terça-feira, 24 de maio de 2011

Fones de ouvido

Desde que dominou o fogo nos primórdios da civilização, o ser humano vem criando inúmeras invenções destinadas aos mais diferentes propósitos. Algumas deram muito certo (como a prensa de Gutenberg, por exemplo), mas também não faltam exemplos de outras que trouxeram muito aborrecimento e irritação (como, por exemplo, a prensa de Gutenberg). Nesse infindável mundo de criações humanas, algumas invenções figuram acima de outras devido a sua grande engenhosidade e seu impacto na sociedade (entre elas, a prensa de Gutenberg), e praticamente habitam um Olimpo das grandes obras da humanidade.

Pra mim, uma dessas invenções grandiosas são os fones de ouvido.

Pra quem nunca viu uma dessas jóias da mente humana, fones de ouvido são um minúsculo conjunto de caixas de som que você enfia nas suas orelhas para, então, ouvir a merda que você bem entender sem irritar as pessoas facilmente mau-humoradas ao seu redor. Inicialmente criados por volta de 1920 para aplicações como telefones ou rádios, os fones de ouvido atingiram seu completo potencial apenas com a criação dos Walkmen e das fitas cassete, que permitiram que um indivíduo ouvisse suas músicas prediletas onde e quando ele bem entendesse sem ter que carregar uma vitrola no seu ombro para isso.

O que é, a meu ver, uma verdadeira revolução.

Sem um fone de ouvido, você é quase que obrigado a ouvir o que os arredores te obrigavam. Primeiro porque se alguem liga um rádio do seu lado, você é fisicamente obrigado a ouvir aquilo. Segundo porque sem um fone de ouvido você não vai sair por aí ouvindo, digamos, Sidney Magal.
Você até pode, claro, mas lá no fundo você sabe que é muito brega.

Agora, se você tiver um fone de ouvido, você tem a liberdade de entulhar seus ouvidos com a música que você achar apropriada. Por pior que seja o som, você pode ouvi-lo livremente sem que ninguém te repreenda, reclame, ou atire nas suas costas.

Como se não bastasse o fato de te dar um alto grau de liberdade musical, um fone de ouvido também promove a tolerância social de modo comparável com poucos outros objetos do cotidiano. O fone de ouvido permite ao cidadão apreciar o que ele bem entende sem ferir os gostos ou preferências dos indivíduos ao seu redor. Isso permite, por exemplo, que várias pessoas possam compartilhar um espaço fechado, como um ônibus, ouvindo cada uma o que bem entende, sem que surja nenhuma animosidade entre elas.

O que é algo extremamente difícil, considerando a facilidade com que o ser humano se irrita com qualquer besteira.

Portanto, eu acredito que, para uma sociedade melhor, um dos primeiros passos que deveríamos tomar seria o de disponibilizar fones de ouvidos gratuitamente para a população geral, do mesmo modo que é feito com vacinas ou camisinhas.

Com esse grandioso passo, a harmonia entre os povos aumentaria consideravelmente conforme as pessoas deixassem de ferir ouvidos alheios com seus gostos musicais peculiares. As diferentes tribos musicais deixariam de brigar, haveria paz entre judeus, muçulmanos e cristãos, a fome na África acabaria e, principalmente, os funkeiros deixariam de ouvir funk pelo alto-falante do celular dentro do busão.

domingo, 15 de maio de 2011

Porque eu prefiro a noite

Não é que eu não goste do dia, vejam bem. Muito pelo contrário, eu gosto do dia. Gosto até mesmo - pasmem - do sol (exceto, claro, quando é verão e eu tô embaixo dele). O dia é bem mais bonito, mais claro, interessante aos olhos. Só tem um problema nele.

O problema do dia, basicamente, é que as pessoas ficam acordadas nele.

E, como todos nós sabemos, as pessoas tem essa mania desagradável de estragar as coisas.

Não sei se elas fazem isso por querer. Só sei que elas fazem. Você pode ter algo perfeitamente bom e agradável - coloque umas pessoas no meio, e elas vão dar um jeito de estragar o negócio, de alguma maneira. Seja colocando um bar na frente em que só toque sertanejo universitário, seja cimentando tudo em volta pra construir uma cidade, as pessoas VÃO estragar a coisa.

Que foi o que aconteceu com o dia.

O dia é bonito, agradável e claro. Mas, por culpa das pessoas, ficou também barulhento, caótico e aborrecido.

A noite, por outro lado, pode ser escura e meio chata de se olhar. Porém, foi o horário em que as pessoas coincidentemente escolheram pra dormir.

O resultado? Não tem música ruim. Não tem barulho de carro. Não tem gente se acotovelando nas calçadas. Não tem gente te enchendo o saco por qualquer motivo.

Não tem gente.

E é por isso que eu prefiro a noite.
O dia é irritante, cheio de ordens, julgamentos e opiniões egoístas. Durante o dia, você está sempre sob os olhos de alguem, te julgando, te observando, dizendo o que você pode fazer, como você devia fazê-lo, porque você não deveria fazer de outro jeito, e sempre disposto a ignorar sumariamente as suas opiniões.
Já a noite é livre, silenciosa, calma e permissiva. Durante a noite, não tem ninguem pra te irritar. Você pode fazer a merda que você quiser, na ordem que você quiser, a hora que você quiser. As regras de boa conduta e educação da população não são válidas porque, afinal de contas, a população está dormindo!

Quer comer o doce antes do salgado? Vá em frente!

Quer tomar refrigerante sem gás porque é melhor? A escolha é sua, campeão!

Quer andar por aí de chinelo e meia? Pode ir, ninguem vai te repreender!

Quer passar no farol vermelho? De noite, você pode!

Agora, tente fazer qualquer uma dessas coisas de dia:

"Desde quando você pode comer a sobremesa antes do almoço, mocinho?!?"

"Eca, refrigerante sem gás? Fica parecendo chá!"

"Chinelo e MEIA? Você não tem nenhum senso estético?!?!"

"Que que esse filho da puta tá passando no farol vermelh- CRASH!"

Notaram a diferença?

terça-feira, 10 de maio de 2011

Osama

E na série "notícias atrasadas em uma semana": Morreu Osama bin Laden.

Mas não é sobre isso que eu estou aqui para falar hoje, após um mês de abstinência escrital.
Estou aqui pra falar sobre a morte de alguém muito mais notável:

O/a Lacraia.

Para quem não sabe, o indivíduo acima mencionado, apelidado em homenagem ao conhecido animal peçonhento de formato longo e movimentos imprevisíveis, é um dançarino famoso pela sua performance... extenuante... no hit nacional de 2003, "Égua Pocotó".

Para os infelizes que não apreciam a fina arte do Funk Carioca, tal canção é baseada num poema épico de Sérgio Braga Manhãs, entitulado "A Égua Cavalgante", que foi amplamente considerado pela crítica nacional e internacional como um dos mais fortes concorrentes à grandes prêmios literários, incluindo nessa lista o Nobel de Literatura (que foi injustamente concedido ao sul-africano J. M. Coetzee). Tal poema foi musicado um ano depois pelo conhecido e aclamado músico carioca MC Serginho. Serginho, movido pelo amor à arte, realizou uma primorosa versão musical do poema, com o intuito de espalhar esse belíssimo trabalho literário às massas. A canção, entitulada "Égua Pocotó", foi escrita de modo a facilitar a compreensão da obra pela população menos educada sem, contudo, reduzir a beleza do trabalho original. Numa das passagens mais memoráveis, o cantor utiliza de forma estupenda o recurso das onomatopéias para exaltar o cavalgar de sua amada égua ao declamar: "Pocotó, pocotó, pocotó, minha éguinha pocotó!".

Realmente, um trabalho magnífico.

A música era acompanhada por uma performance do dançarino Lacraia, que ajudou ainda mais a divulgá-la com seus estafantes e quase incompreensíveis movimentos corporais. A parceria entre o músico e o dançarino durou mais de 6 anos antes que Lacraia, após ficar incomensuravelmente rico devido aos anos de sucesso, resolveu se aposentar.

Sua vida de marajá terminou hoje, porém, com sua triste e precoce morte.

Agora, vocês devem estar se perguntando "por que, Fábio, estás tu a divagar sobre um reles dançarino de funk, quando personalidades tão notáveis como o bin Laden morreram tão recentemente?"

É simples, meus caros. MC Serginho e o/a Lacraia, com sua éguinha pocotó, pocotó, pocotó, marcaram em minha juventude o início da ditadura da música ruim.

Assim como bin Laden mudou o mundo ao realizar o maior atentado terrorista da história, a "Égua Pocotó" mudou o cenário cultural brasileiro ao ressucitar o funk, realizando um verdadeiro atentado cultural.

No momento em que a voz rouca e desafinada de MC Serginho irrompeu de algum alto falante e se aproximou violentamente de meus tímpanos, foi como se as torres gêmeas da boa música fossem atingidas por aviões sequestrados pelos terroristas do funk carioca.

Se a "Égua Pocotó" fosse um fenômeno isolado no ambiente musical, já seria por si só algo desagradável. Porém a situação foi muito pior. O sucesso da "música" abriu espaço a outras atrocidades sonoras, desprovidas de gosto, desagradáveis e vulgares. Atrocidades como o "Créu", a "Dança da Motinha" e toda a discografia da Tati Quebra-Barraco, que desde então me acompanham constantemente, me perseguindo através do alto-falante do carro de seres desprovidos de massa encefálica.

A morte do/a Lacraia é uma lembrança do ínicio dos tempos obscuros de fama do funk carioca. É uma oportunidade de reflexão, uma maneira de nos lembrar que, assim como a bomba atômica, o terrorismo e o fanatismo religioso, existem coisas que seriam melhores se fossem simplesmente esquecidas.